Não
olhe para trás
Por Pablo
Spinelli
O filme O
ataque dos cães, disponível na Netflix, cujo título em português é
muito ruim diante da tradução mais correta e pertinente, O poder do cão, tem um roteiro muito simples. Uma dupla de irmãos
saiu da costa leste para criarem gado em uma fazenda em Montana. Um dos irmãos
acaba por se casar com a dona de um pequeno restaurante local, viúva, que tem
um filho que destoa do ambiente rústico pela sua sensibilidade e introspecção.
O irmão mais jovem decide por infernizar a vida da cunhada e de seu filho em
uma tensa construção de tortura psicológica.
Nesses termos, nada faz
parecer que essa história seja um faroeste ambientando na década de 1920 pela
falta de pistoleiros, saloon, duelos e outros clichês do gênero. O filme,
dirigido por Jane Campion, a segunda mulher na história do Oscar a ser indicada
a categoria de direção por O Piano, é
um complexo drama psicológico onde os personagens apresentam várias camadas e o
duelo de pistolas é substituído pelo domínio do conhecimento e do poder de
sedução, temas também presentes no filme O Piano – também tinha um personagem
bruto que foi interpretado por Sam Neill (Peaky Blinders). Nesse caso, a trama
se concentra no quarteto brilhantemente vivido por Benedict Cumberbatch (Dr.
Estranho), Jesse Plamons (O Irlandês e Breaking Bad), Kirsten Dunst (Entrevista
com Vampiro) e o surpreendente Kodi Smith-McPhee (X-Men: Apocalypse) que usa
com inteligência uma imagem andrógina que enfrenta a brutalidade do personagem
de Cumberbatch. Aqui, o intérprete de Sherlock, faz uma de suas melhores
performances, ao interpretar um vaqueiro rude e grosseiro que cultiva uma
animosidade com os pais e que tem o hábito estranho de dormir na cama junto com
o irmão – hábito rompido com o casamento daquele, criador de animosidades com
indígenas, cultivador de um passado que fez do linguista formado em Yale um
vaqueiro nas mãos do falecido e cultuado Bronco Henry, aquele que o teria feito
ser homem. O espectador tem que entender que o vaqueiro é uma persona de
Cumberbatch, pois ele não era daquele meio e foi introduzido por Bronco Henry
nas planícies selvagens do Meio-Oeste.
Plamons tem uma pequena
participação, mas trabalhada com minucioso silêncio e olhares, uma relação de
respeito e imposição à fera selvagem que é seu irmão. Dunst, mulher de Plamons
na vida real, tem uma atuação sem exageros para destacar a fragilidade mental e
emocional que passa na segunda metade do filme nas mãos do cunhado. A cena do
ensaio ao piano é exemplar desse jogo psicológico. Certeira a sua indicação ao
Oscar, assim como as de Benedict e Smith-McPhee. Jane Campion faz referências
não só ao seu filme de maior sucesso, como também a Rebecca – a mulher inesquecível (1940) e a O Segredo de Brokeback Mountain (2005), sem ficar abaixo de nenhuma
delas. Passa pela brutalidade do Oeste ao drama e suspense psicológicos em um
cenário que remonta a uma sociedade ateniense clássica, repleta de homoerotismo
e com as mulheres em um papel secundário. A imensidão da paisagem numa
excelente fotografia propositalmente dialoga com os infernos interiores dos
personagens. A luz externa e as sombras da casa são um parâmetro das almas e da
luz da ciência pode sair uma solução das sombras. Todavia, o filme é uma
referência bíblica do Velho Testamento.
O filme, na modesta
opinião de quem escreve, foi a melhor produção americana do ano. Ficou irônico
ouvir a primeira e melhor Mary Jane chamar por “Peter” ao longo do filme em tom
de angústia e medo. Na semana que se relembrou a trágico episódio do ataque ao
Capitólio há um ano no coração da democracia americana, país da Revolução – em
termos de Hannah Arendt - que colocou vários ideais iluministas em prática, o
filme tem muito a nos dizer sobre o poder do ressentimento, seja para
entendermos o eleitor de Trump, seja para pensar em nem olhar para cima e nem
para trás, como o principal partido de oposição ao presidente reiteradamente
faz. É necessário sair do saudosismo de um passado idílico que nunca existiu
com Bronco Henry e pensar em um programa, especialmente para os jovens, pois
uma geração abaixo de vinte anos não viu o impacto da festa popular ocorrida em
Brasília em 2003 e nem viu a transição elegante e republicana da troca de
faixas de um sociólogo para um torneiro mecânico, ambos representantes da
socialdemocracia germinada em São Paulo. Esses jovens abraçaram Bronco Henry e
precisam de uma vacina democrática e republicana.
PS: Temos um leve SPOILER nas linhas abaixo.
Interessante notar o
silêncio dos identitários aguerridos no cancelamento quanto ao que o filme
propôs. Um homossexual usando de sadismo contra uma mulher. Se falar que o
filme é homofóbico vai ter o nó com o personagem jovem. Se tentar explicar a
violência pela força do meio acaba por legitimar o machismo gay. Se disser que
a mulher é fraca será homofobia. Tem que torcer muito para que Duna ganhe o
Oscar, pois será um golpe no fascismo de esquerda que foi engendrado...por uma
mulher.
Irei assistir. Obrigada. Li o spoiler.
ResponderExcluirEnglish, please.
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