Pandemias, Democracias & Repúblicas
Em memória do meu filho Ricardo Góes Magalhães
Marinho (1988-2017), vítima de outra pandemia.
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Cólera, a despeito de algumas
discussões entre nós historiadores, é geralmente aceita que foi uma doença
inteiramente nova no século XIX, pelo menos para a Europa e a América. Tendo sida
identificada em Bengala desde a Antiguidade e observada nas campanhas de
Alexandre, o Grande e depois por outros viajantes para a Índia. Mas só veio
para a Europa como resultado da abertura de novas rotas comerciais através do
Afeganistão e da Pérsia após a conquista britânica do norte da Índia, saindo
assim de Bengala em 1817.
Logo, em meados da década de 1820, foi
interrompido o suposto cordão sanitário militar estabelecido pelos russos, mas
o comércio seguiu crescendo na região e em 1827 a cólera estava movendo-se ao
longo do Volga e chegando a São Petersburgo e daí para Alemanha em 1831 e
Grã-Bretanha e França em 1832.
Assim que chegou à Europa, a cólera
rapidamente se alicerçou em outro aspecto decisivo da sua expansão no século
XIX. A industrialização ajudou a mover a cólera rapidamente de um lugar para
outro, primeiro ao longo dos rios e canais que eram as principais artérias de
transporte nas décadas de 1820 e 1830, e em seguida, ainda mais rapidamente ao
longo das linhas ferroviárias que começaram a ser construídas em toda a Europa
a partir da década de 1840 em diante, esse processo que seria brilhantemente
sintetizado num famoso texto de 1848 que expressou o sentimento de que tudo que era solido desmanchava no ar.
A coincidência dessas grandes
epidemias de cólera com períodos de guerra, agitação e revolução é muito óbvia
para ser ignorada e foi observada em uma variedade de maneiras pelos
contemporâneos. Em 1848-1849, ela seguiu as forças da ordem, incluindo mais uma
vez as tropas russas, que ajudaram a derrotar a Primavera dos Povos. A coincidência não passou despercebida aos contemporâneos,
que compararam a grande limpeza da Europa após a epidemia com o retrocesso da
maré revolucionária pelas forças da reação, lideradas pela Prússia e pela
Áustria. A epidemia de 1854-1856, que de forma semelhante varreu a Europa da
Rússia ao Ocidente, foi também o único que se espalhou pela Europa de Ocidente
a Oriente, levado para a Turquia, Bulgária e Oriente Médio por tropas
britânicas e francesas que lutaram na Guerra da Crimeia. As epidemias de 1866 e
1871 foram espalhadas pelas guerras de Bismarck para a unificação alemã. Em
1892, a cólera chegou ao oeste e depois para a Europa Central com uma onda de
migrantes em fuga da perseguição, em particular a perseguição antissemita, na
Rússia e à procura de um novo lar na América, através do porto marítimo alemão
de Hamburgo. Portanto, mais uma vez, como na historia da Peste Negra, tanto a
guerra quanto o comércio levaram as doenças a novas vítimas.
O miasma, como era conhecido,
naturalmente apelava aos interesses de qualquer estado que estivesse particularmente
preocupado com os efeitos econômicos da quarentena, e nada mais do que a
cidade-estado autônoma de Hamburgo, no norte da Alemanha, o maior porto
marítimo do continente europeu e o mais rico do mundo depois dos de Londres,
Liverpool e Nova York.
O Conselho Médico de Hamburgo, sob a
poderosa influência das famílias de comerciantes, garantiu ao longo das décadas
de 1870 e 1880 que nenhum médico fosse nomeado para um cargo oficial, a menos
que fosse adepto da teoria do miasma sobre as doenças e sua transmissão.
Em 1890, as opiniões do médico
bacteriologista Robert Koch (1843-1910) haviam conquistado o Império,
refletindo a virada do governo alemão de 1879, para uma maior intervenção na
economia e na sociedade, e Berlim estava oficialmente apoiando a teoria do contágio
da cólera, colocando em prática planos para quarentenas e medidas de
desinfecção caso a doença surja em qualquer parte da Alemanha. Mas os poderes
do governo Imperial sobre os estados federados eram limitados, tal qual numa
república democrática. Berlim não poderia forçar Hamburgo a aceitar seus pontos
de vista. Em agosto de 1892 a doença chegou a Hamburgo via Rússia em um trem de
migrantes. Logo atingiu o ponto de captação de água da cidade, espalhou-se através
dos reservatórios e foi bombeada para as casas de toda a cidade antes que as
autoridades médicas viessem a tomar quaisquer medidas para diagnosticar a
doença nas primeiras vítimas e/ou tomar providenciais para combatê-la ou
alertar as pessoas de sua presença. Logo as vítimas estavam sendo recolhidas
aos milhares em lares infectados e levadas ao hospital, e em 50% dos casos
nunca mais voltaram.
A legitimidade da administração do
Estado de Hamburgo foi severamente atingida pela epidemia. Koch foi enviado
pelo governo nacional a Hamburgo para impor quarentena, desinfecção e outras
medidas, incluindo a distribuição de água não contaminada e gratuita e instruções
aos cidadãos para ferver toda a água antes de usá-la - medidas que tiveram
algum impacto para o fim da epidemia. Hamburgo foi forçado a reformar seu
sistema de administração e nomear os adeptos das teorias de Koch para
postos-chave no serviço médico.
Foi notável em 1892 que as pessoas
comuns em Hamburgo não levantassem objeções às medidas tomadas por Koch. Mas as
classes trabalhadoras da cidade apoiaram esmagadoramente o Partido Socialdemocrata
da Alemanha, que, como movimento político progressista de massa, acreditava na
legitimidade da ciência moderna e cooperou plenamente com Koch e as autoridades
no combate à epidemia. Os efeitos políticos da epidemia não foram encontrados
em protestos estéreis contra A ou B, mas na lembrança constante desse desastre
pelos socialdemocratas que apontaram, além disso, a pilhagem da administração
do estado para servir aos interesses de uma minoria rica e negligenciar a saúde
e a seguridade do cidadão comum. Nas eleições nacionais de 1893, todas as
cadeiras do Reichstag da cidade foram para os socialdemocratas.
Essa é a lição que nos vem dessa
experiência para que não fiquemos perdidos
em agitações estéreis (de rua ou não só), sem repararmos que eppur si muove, que o movimento da Terra que traz
consigo a mudança das estações, que não sentimos, na frase famosa de Joaquim
Nabuco, mas este movimento de intelectuais-massa que aí está não dá para não
perceber.
Niterói,
5 de junho de 2021
[1] Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi.
Esperando a número 2 - Sobre Josef Mengele
ResponderExcluirVocês estão no you tube,? Como faço para me inscrever?
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