sexta-feira, 28 de junho de 2024

BOLETIM BRASÍLIA CONECTION - BBC 043 - DESAFIO DE FAZER POLÍTICA NA ECONOMIA

Inflação na Fronteira

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]


No Jornal Hoje do último sábado (22/06/2024) recordei a leitura de um conto da escritora argentina Samanta Schweblin. O título apesar de nada convidativo, “Debaixo da terra” é muito bom. O primeiro parágrafo, curto, introduz-nos sutilmente num clima de mistério: um viajante entra num bar de beira de estrada, isolado e solitário, e dirige-se ao barman. A atmosfera, criada nessas poucas linhas, é sugestivo. O viajante pede uma cerveja. Aparece então a primeira linha do diálogo, pela boca do barman: “São cinco pesos”, disse ele.

Cinco pesos? Inevitavelmente, volto a matéria do jornalista Marcos Landim (https://globoplay.globo.com/v/12699720/) e me pergunto: que cerveja pode valer cinco pesos? Em que ano essa história foi escrita? Sua publicação no seu livro Pássaros na boca e Sete casas vazias: Contos reunidos (Fósforo, São Paulo, 2022) se deu em 2009 e podemos pensar nesse ano, e se o valor fosse esse, e em tudo que ocasionou o aumento da cerveja desde então... E volto a ler o conto com aquele pensamento: a magia da ficção, aquele sonho lúcido de que falava o Nobel de Literatura de 1982 e jornalista colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), foi contaminado e deve ser bem compreendido. Surgiu um vírus sutil: o problema da inflação, que perturba tudo e do qual nem as/os literatas/os nem os leitores estão imunes.

Como a literatura conseguirá imaginar o fluxo de argentinos de Puerto Esperanza e Wanda vindo fazer suas compras de uma cesta básica na cidade brasileira de Foz do Iguaçu, no Estado do Paraná, sem que isso soe como um ruido ao longo do tempo. Imagino-os atualizando os números a cada ida aos mercados argentinos, considerando a ideia desesperadora de dolarizar seus ganhos, enquanto existe a acolhida brasileira com nossa economia equilibrada a 30 anos.

Porque a literatura argentina, tem tido o espectro da inflação entre outros personagens e/ou pano de fundo do universo econômico, como também se viu no filme de Sebastián Borensztein, A Odisseia dos Tontos (2019), que é fruto de um roteiro adaptado do livro do Eduardo Sacheri, La noche de la usina (2016). Nessa obra inclusive tem o cálculo da mala em que o criminoso do sistema bancário transporta o fruto do seu desfalque dos correntistas que depende não só do valor dele, mas também do valor máximo das notas. Não se pode entregar milhões de pesos num envelope, e daí a mala. Dito de outra forma: você não pode subornar na Argentina e ser discreto. Todas essas questões que afetam a verossimilhança da cena literária e cinematográfica complicam a vida da narrativa. Esse tremendo drama do corralito desgraçou a vida dos giles (os honestos) que tentaram salvar a honra dos seus é quase incompreensível para nós hoje.

A inflação, em todo e qualquer hipótese, sendo um problema grave no panorama literário argentino, tem cada vez mais e piores consequências, que para os fronteiriços conosco tem podido receber o nosso abraço e acolhida. Diversamente, os nãos circunvizinhos vivem a pressão decorrente da inflação com uma psique próxima de O Jogador, de Dostoiévski, onde quantias são mencionadas em todas as páginas e seus valores relativos são muito relevantes para a trama. Ali os personagens apostam, ganham e perdem, pedem emprestados... Fala-se constantemente de dinheiro. A literatura argentina se atrevera a fazer algo assim? São temas complexos que tem implicado inúmeros esclarecimentos e entendimentos. Mas novos também surgem graças à inflação: A Uruguaia (Todavia, São Paulo, 2018), de Pedro Mairal, narra uma trama que tem a ver com câmbio, restrições e uma movimentada viagem ao Uruguai para sacar dólares. A questão, nesta estória, aponta para os leitores: quantos serão capazes de compreender plenamente narrativas como essa?

Com essas ideias e os livros argentinos, podemos voltar a reportagem do Marcos Landim e perceber os semblantes das argentinas e seu alívio em poder contar com uma atmosfera calma para as suas necessárias compras, sem a sombra dos 276% de inflação como informou a pouco o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos da República Argentina (INDEC).

Que nossos vizinhos encontrem o quanto antes a simetria econômica e saiam desse pavoroso mundo de exageros horrendos.

 

28 de junho de 2024



[1] Presidente do Conselho Deliberativo da CEDAE Saúde e professor da Faculdade Unyleya, da UniverCEDAE e do Instituto Devecchi.

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