Lembrai-vos do Pacto de Moncloa
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Em 28 de
maio, foram realizadas eleições municipais e regionais em quase toda a Espanha. Desde aquele dia não faltaram análises e
reflexões profundas que abundam nas causas — igualmente profundas — para os
resultados. É o que há depois de um dia de eleição, que aqui não se faz
entender desde os engodos revogatórios que se disse por aqui. A surpresa da
convocatória que o Presidente do Governo da Espanha fez para as eleições gerais
para 23 de julho atrapalhou os relógios políticos e, sobretudo, atrapalhou a
festa que a direita pretendia celebrar desde a noite de 28 de maio, quando
foram anunciadas as eleições gerais.
Neste pouco
menos de mês e meio que falta para 23 de julho, a direita vai continuar a fazer
o seu trabalho: encher a Espanha de mentiras. A extrema direita anuncia que a
Espanha quebrou nas mãos de Termidorianos. Os quatro cavaleiros do Apocalipse
resumidos em um: o Presidente do Governo da Espanha. Com isso a direita tem feito
o necessário. Vamos ver se a Frente Democrática e a
força de sua união e de a resposta civilizatória. E a celebração dos avanços
planetários adiados desde a manhã de 29 de maio e se acertar o passo pelo menos
para os próximos quatro anos. Esperançosamente. Mas, desta vez, precisamos
deixar claro o que se passou depois da noite eleitoral de 28 de maio, pois
ficou transparente — mais uma vez — que a democracia espanhola tem mais fragilidades
do que se imaginava.
Numa
democracia não deveria permitir um terreno de ilusões do povo, as aspirações de
uma sociedade seja uma coisa ou outra dependendo de quem ganha ou perde uma
eleição, mas ao contrário, devem vir daquilo todos sabem de onde viemos e o que
tem sido feito da nossa herança, e a dignidade de saber para onde se deseja
chegar quando colocamos a devida memória daqueles que vieram antes de nós. As
urnas nunca poderiam ser um jogo, seja ele qual for.
Tanto a
direita quanto sua excrescência, encena há anos uma peça maluca, a Shakespeare,
se nos ativermos à célebre frase de Macbeth sobre a vida ("uma
história contada por um idiota, cheio de som e fúria, significando nada”): o
afastamento de um líder errático e frágil e sua substituição por outro com o
talento sintático e o gênio político de um Teletubbies; a espantosa audácia
(deixemos de lado ações potencialmente criminosas) de uma baronesa muito
poderosa; o desprezo pela saúde pública e pela natureza exibido por seus governos
autônomos... Em todos os momentos, porém, eles garantiram que seu público
permanecesse crédulo e receptivo ao efeito emocional.
A coalizão
do Presidente do Governo da Espanha tem oferecido um trabalho que não é
essencialmente ruim, com passagens quase geniais (direitos sociais e
individuais, por exemplo) e momentos sombrios (Marrocos, para escolher um)
daqueles que exaltam como não poderia deixar de ser, a fúria do público. Mas,
ele se valeu completamente da alienação que compõem um repertório que devia
combater como indicara Bertolt Brecht. Cada vez que um ator declamava no palco
alguma frase como "este governo segue unido", outro se aproximava da plateia
para sussurrar "cuidado, lembre-se que todos nós nos odiamos aqui";
em cada monólogo do protagonista brilhava uma mensagem subjacente (“você sabe
que estou mentindo, mas estou fazendo certo?”); quando algo desanda significa
que o todo fez besteira, o que incita o público a vaiar pelo menos um de seus
membros (um, na experiência em questão).
Mas, isso
não é a realidade? Ou é um teatro de sombras como disse certa vez nosso imortal
José Murilo de Carvalho? O fato é que numa campanha eleitoral não se deveria exigir
do público que suspenda a realidade, que esqueça o senso crítico, que participe
da ilusão, que desfrute do jogo. Uma Frente Democrática
e o público que a sustenta nunca pode se acostumar com a alienação.
Apesar do
sistema de Victor d'Hondt e suas consequências na distribuição das cadeiras do
legislativo, não importa se os Jacobinos vão às urnas unidos ou separados e que
os girondinos interpretam melhor ou pior o papel de partidários coesos. Todos sabem
o truque. Os atores já disseram muitas vezes para não confiar neles.
Recordemos
duas coisas: que as eleições não podem se referir a um conjunto de ilusões
coletivas sobre o futuro do que uma avaliação racional do passado recente, e
que o pior resultado aconteceu com a Frente Ampla espanhola ocorrida nas
eleições de 2000, quando o Partido Socialista Operário Espanhol e a Esquerda Unida
correram juntos em uma coalizão forçada e implausível que, segundo todas as
pesquisas a época, perderia por pouco ou perderia por milhões.
Por isso o
resultado eleitoral das eleições municipais e regionais de 28 de maio não deixa
dúvidas. Uma onda reacionária está chegando e a maioria da mídia espanhola está
nadando na mesma direção como ficou claro ontem no Estádio Cornellà-El Prat, em
Barcelona. Para tentar evitar o pior só somando numa Frente Democrática.
18 de junho de 2023
[1] Presidente da CEDAE
Saúde e professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da
UniverCEDAE.