Sobre o populismo reacionário
Ricardo José de Azevedo Marinho[1]
Lynch, Christian e Cassimiro, Paulo Henrique. Populismo reacionário:
ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo: Contracorrente, 2022. 209
págs.
A noção de populismo encontra-se em discursos
muito diferentes e, claro, em diferentes realidades. Christian Lynch e Paulo
Henrique Cassimiro propõem-se reconstruir em nossa história recente os
elementos que lhe deram vida aqui e fazem uma crítica mais pertinente do que
nunca. Para além das especulações de todo tipo e das diferentes abordagens
acadêmicas, a verdade é que o fenômeno tem impactado e desgastado ao extremo –
e talvez irreversivelmente – as democracias. Não é uma questão restrita às
universidades e faculdades, mas está no núcleo do debate e da preocupação
pública.
Os autores resgatam elementos
constituintes da construção narrativa da política populista reacionária: uma
concepção do povo, uma modalidade de representação, uma política e uma
filosofia da economia e um regime de paixões e emoções. Cada um desses
elementos é analisado e, em seguida, são reconstruídos alguns dos episódios que
deram azo a esses momentos que podem ser considerados como irrupções do
populismo reacionário, para finalmente realizar uma crítica perspicaz e pertinente.
O livro vai longe. O componente e
nutriente emocional do populismo reacionário mobiliza ressentimentos de forma
destrutiva, colocando ácido nas balizas do acordo democrático, mas também
deslocando a tradição que lançou a arquitetura da ilustração entre nós; uma
arquitetura que apostava na razão, no conhecimento e na ciência como
características modelares da conversa pública, da convivência e até mesmo da
luta política.
Quando se mobilizam retoricamente as
paixões, sempre se coloca sob suspeição a civilidade e se constitui uma ameaça
à democracia. Inclinada a falsificar julgamentos, desviar comportamentos,
perturbar as relações com os outros e derruir a convivialidade na sociedade,
isso pode engendrar nos grupos humanos, compostos de indivíduos isoladamente
racionais, um sentimento de multidão incontrolável e até criminosa. Primeiro em
linguagem comum e, depois, mesmo na ordem intelectual, a conotação reacionária
se firma. Por referir-se ao excesso, a uma força descontrolada, tudo passa a
ser quase como um sinônimo de “emoção” ou mesmo mais uma variável da ação
humana. No entanto, seu uso em linguagem cotidiana gera muitas apreensões, uma
vez que se mostra relevante quando as paixões extremas (em oposição à razão)
inundam o espaço público.
É claro que paixões e política não podem
ser dissociadas. Elas são combustíveis fundamentais para mobilizações de todo
tipo. Muitas vezes, para quem a encarna, a política está cheia de emoções,
tratando-se de matéria de graus. Não estamos, quando falamos de política, diante
de uma atividade “fria” e/ou apenas racional, mas, se a racionalidade estiver
nublada – ofuscada – pela emoção, todos estarão em dificuldades.
O populismo reacionário soube capturar e
explorar essas emoções. O sentimento de raiva, de não ser considerado, produto
de uma divisão entre o mundo dos poderosos e o resto dos mortais, foi colocado
à flor da pele. E esse ressentimento tornou-se um poderoso nutriente para o
discurso populista.
Paradoxalmente, nas sociedades
democráticas, a informação corre com enorme velocidade e combina verdades com
inverdades descaradas. As redes aumentam o poder das trocas e a leitura do
significado do que está acontecendo torna-se mais difícil. Há uma catarata
imparável de informação, quase impossível de digerir e ordenar. Nesse roldão,
as versões conspiratórias acabam maculando as tentativas políticas de restaurar
a coerência em um mundo vivido como indecifrável e ameaçador. O populismo
reacionário atua como uma espécie de sedativo, oferecendo ordem à desordem e
suposta compreensão ao caos. E somado a isso há erosão da confiança nas
instituições democráticas, o ambiente armado para a exploração de visões
simplistas, como a contundente contraposição entre “nós, o povo” e “a máfia no
poder”. Na percepção de Tocqueville, uma ideia falsa, mas clara e precisa, terá
sempre mais força no mundo do que uma ideia verdadeira e complexa.
Não é então apenas a expansão de um
impulso reacionário, mas algo mais profundo. É um composto discursivo que
atenta contra os grandes pilares civilizatórios que apostam no conhecimento
científico e no humanismo como forja de um espaço público conhecedor e
razoável, promotor de diálogo e debate informados, uma sociedade de indivíduos
e não alguma forma de rebanho.
Kant disse que o Século das Luzes
significaria o abandono pela humanidade da condição de minoridade. Esse
abandono da minoridade significava vencer a eventualidade de ser usado ou ser
guiado por outra pessoa. O populismo reacionário marcha na direção oposta: o
mito parasitário – nos termos de Manuel Bomfim – pastoreia uma visão de mundo
como um mingau simplista e contundente, explorando as emoções e oferecendo-lhes
uma sensação de falsa transcendência.
É necessário recordar, como o fazem
Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro, que foi o momento civilizatório das
Luzes que forjou usos e costumes, bem como direitos, instituições e normas que
permitem uma convivência cidadã. O mais preocupante com a proliferação das
alavancas populistas reacionárias é que elas não apenas minam o arranjo
democrático, mas também vão de encontro a muitos dos hábitos que permitem uma
vida democrática e republicana.
[1] Professor do Instituto Devecchi,
da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.
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