terça-feira, 23 de agosto de 2022

SÉRIE ESTUDOS - UM LIVRO PARA O AGOSTO LILÁS


 

O verão invencível invernal

 

Ricardo José de Azevedo Marinho[1]

 

Garza, Cristina Rivera. El invencible verano de Liliana. Ciudad de México: Penguin Random House, 2021. 304 págs.

 

Vídeo sobre os 10 anos da Lei Maria da Penha 

Talvez o nosso público nunca venha a ler esse livro admirável por sua profissão, por sua verdade, por sua palpitação explosiva no seio de nossa barbárie cotidiana de feminicídios.

É o livro da mexicana Cristina Rivera Garza sobre o feminicídio de sua irmã Liliana, em 16 de julho 1990, na Cidade do México, durante o governo de Carlos Salinas de Gortari (PRI).

O livro começa em 2016, com a busca análoga do argentino Eduardo Sacheri em O Segredo dos Seus Olhos (São Paulo: Suma de Letras, 2011) nos arquivos dos feminicídios calados e apagados. É uma lição de artesanato narrativo e criação de atmosfera.

Resultado: não há arquivo, não está disponível nem digitalizado ou qualquer outro formato. Precisamos seguir procurando. Portanto, devemos reconstruir o que aconteceu, devemos escrever um romance histórico.

Liliana, como a brasileira filha de migrantes Araceli Cabrera Sánchez Crespo (1964-1973) que José Louzeiro (1932-2017) primeiro registrou em Aracelli, Meu Amor  (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976) e depois a Lei N° 9.970, de 17 de maio de 2000 (instituiu o dia de seu nascimento em 18 de maio como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes), Ângela Diniz (1944-1976) e todas as recordações póstumas a ela e de tantas outras, não sabia como ou por que ia morrer, embora soubesse de uma forma sombria, por causa da natureza violenta, repetida, ciumenta, invisível aos outros, de seu feminicída.

Liliana é apresentada como uma menina muito inteligente, cheia de perguntas e alegrias. Ela estava deixando sua marca clara na percepção dos outros e em textos admiravelmente organizados com sua caligrafia retilínea, de uma arquiteta em ascensão.

Cristina Rivera Garza encontra nas cartas da irmã imagens de seu desejo de viajar e ser recebida, de suas relações com amigos, primos, com a própria mãe e com quem mais tarde seria seu assassino. Boa parte do arquivo de Liliana é composto por cartas para seus amigos. Eles não são apenas os mais numerosos, mas também os mais cuidadosamente escritos. Uma carta de um amigo não era apenas um pedaço de papel cravejado de letras: o meio era tão importante quanto a mensagem. De alguma forma, esses escritos nos lembram Emily Dickinson (1830-1886), pois os seus textos reúnem sua imagem em uma narrativa sensível.

Entretanto, as emoções de Liliana e seus vários ritos de passagem da infância à adolescência, ao sexo, ao aborto não são retilíneos.

São as navegações de uma mulher real, atravessada por encantos, dúvidas, cicatrizes prematuras e suas liberdades exercidas a flor da pele.

Essa jovem, nadadora, esbelta, cada vez mais livre e aparentemente no controle de si mesma, é retratada nas memórias de seus amigos, e na hermenêutica de seus cadernos, trabalhados pela Cristina Rivera Garza.

Segue-se o grande momento do romance histórico, o movimento de como Liliana se afasta, passo a passo, da ideia doentia e ficcional de posse - um retrato que recorda Karl Polanyi (1886-1964) - de seu primeiro namorado, do seu sentimento de amor recorrente, do seu gélido carrasco, até que, finalmente, em seus textos, ela se constrói livre de seu opressor e suposto proprietário.

É então que o opressor sabe que a perdeu, ele entra em sua casa uma noite e a afoga.


Vamos colocar aqui o nome do feminicída porque ele é foragido e deve ser levado à justiça: Ángel González Ramos.

El invencible verano de Liliana tem uma epígrafe advinda de uma passagem de Albert Camus (1913-1960) em Retorno a Tipasa (1952), que também se fez epígrafe para Isabel Allende no seu Muito além do inverno (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017): "No meio do inverno aprendi, finalmente, que havia em mim um verão invencível." A história de Liliana preenche a epígrafe.

 

22 de agosto de 2022



[1] Professor do Instituto Devecchi, da Unyleya Educacional e da UniverCEDAE.

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