quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A DOCE POLÍTICA NO CINEMA - NÚMERO 2


Spider-man ou a inesperada virtude da ignorância

Dedico aos 24 anos de Isabela, fã de cinema.

Por Pablo Spinelli

 

Aviso de Spoiler: Esse artigo fala mal da nova versão do Homem-Aranha, para saber o porquê você terá que ler as 1 800 palavras abaixo.

O cinema hollywoodiano sofreu uma grande transformação na década de 1950 quando a televisão virou um meio de comunicação comum de entretenimento nos lares da classe média nos EUA em compasso com a insularidade elitista nos subúrbios do país, o que gerou dezenas e dezenas de Springfield, tema caro a um pesquisador como Richard Sennett. O cinema americano dessa década ficou marcado por um pastiche de fórmulas consagradas em determinados estilos, como os filmes de guerra (a Guerra da Coréia iniciou a década de 1950 com participação efetiva de tropas americanas), musicais que davam um sinal de esgotamento, filmes de faroeste que começaram a não atrair mais a juventude americana. Parecia que havia uma esclerose de mesmas histórias que não tinham impacto ao público mais jovem, fora os problemas de autocensura por conta do macarthismo e a paranoia que ele gerou.

A década de 1960 acabou por ser um divisor de águas em Hollywood com a chegada em cena de jovens talentos do teatro, da própria televisão e do mundo universitário. Era uma geração que via nos filmes europeus problematizações e enfoques que permitiam imaginar que os americanos viviam em um estado mental e cultural juvenil de alienamento aos grandes problemas individuais e sociais, como uma narcolepsia coletiva que referendava todos os prognósticos negativos expostos por Theodor Adorno sobre a indústria cultural de massa. Além disso, essa nova geração unia um cosmopolitismo cinéfilo – que chegou a conhecer a obra do japonês Akira Kurosawa – a uma leitura intensa da sociologia, ciência política e de revistas vanguardistas como a New Yorker. Desse modo surgiram filmes financiados por atores que não se encaixavam no sistema de estúdio, como Warren Beatty, que produziu o icônico Boonie e Clyde – uma rajada de balas (1967), como pode ser lido no livro de Mark Harris, Cenas de uma revolução: o nascimento da nova Hollywood, RS,  L&PM, 2011.



O cinema, como qualquer manifestação artística, passa por mudanças técnicas, de perspectivas e de mercado. Os atuais septuagenários George Lucas e Steven Spielberg mudaram as abordagens da Nova Hollywood que os pariu com filmes como Uma Nova Esperança (1977) e Tubarão (1975), respectivamente. Criaram um novo problema para a indústria americana. Os efeitos especiais passaram a ser quase uma condicionante para que as gerações mais jovens fizessem fila, além de uma demanda por bons enredos, por utopias, por nostalgias (Indiana Jones) em virtude do início do neoliberalismo e do neoconservadorismo da presidência (1981-1988) de Ronald Reagan. No Brasil, a demanda juvenil se coadunava com o processo de redemocratização e do governo de transição após a eleição do ex-PSD Tancredo Neves com o ex-UDN José Sarney no Colégio Eleitoral de 1985. O fenômeno blockbuster criou, pela lente do mercado a fórmula de continuações dos mais variados gêneros, dos já citados Star Wars, Indiana Jones à Hora do Pesadelo, Sexta-feira 13, Brinquedo Assassino, Mad Max, Rambo, Karatê Kid, dentre outros.

A terceira grande provocação à indústria americana acabou por surgir não por conta de uma concorrência de indústrias de outros países, ao contrário;  países que começaram a adotar um modelo de responsabilidade fiscal, de redução de investimentos na área educacional (governos ingleses de Tatcher a Tony Blair), governados por  políticos ”antissistêmicos” que valorizaram o embrutecimento humano em prol de prazeres orgiásticos (Berlusconi, por exemplo) viram sua indústria cinematográfica entrar em decadência. O grande nó para Hollywood veio de uma síntese do neoliberalismo em curso: o atendimento por demanda por streaming, a netflixização do público nos últimos dez anos, o toyotismo cultural, o self-service do olhar.

Não é o espaço para aprofundar o tema do uso de metadados, isso está disponível na própria Netflix em O dilema das redes, documentário que atacou a todos, menos à própria Netflix. No final da década passada começou uma intensa fragmentação por cardápios diversos, por vezes, redundantes, com a entrada da HBO, Amazon, e de estúdios que começaram a disponibilizar sua produção, ao invés de compartilhar lucros, como a Disney e a Paramount. Ao contrário da imbecilidade reinante, aqui, a Globo - ao invés de estar falida - pegou carona para lucrar mais em uma lógica de redução de custos e no entendimento de que a pulsão consumidora passou a ter primazia sobre a rotina do horário, ou seja, a novela das 19h ou 21h pode ser vista em qualquer horário, desde que pague.

Dessa forma, o atual público juvenil começou a achar que filme clássico era o produzido nos anos 1980 (e campeões de bilheteria), pois esse é o rótulo nos streamings (exceção é o Petra Belas Artes, cujo valor é inversamente proporcional ao que disponibiliza, e o Telecine Play que tem filmes americanos, franceses, soviéticos dos anos 1920). O gosto por filmes ficou engavetado, condicionado e (res)surgiu um fenômeno que está nos primórdios do cinema, das matinês de sábado desde os anos 1920: uma história contada em forma de série. No caso brasileiro, uma cultura letrada à base do folhetim de José de Alencar e Machado de Assis que vicejou na cultura popular com as novelas de Janet Clair e de Gilberto Braga não poderia dar errado esse tipo de experiência audiovisual. Daí que os jovens começaram a ver uma produção espanhola (sem jamais ter ouvido falar de Pedro Almodóvar ou Buñel) como A Casa de Papel ou fizeram da sul-coreana Round 6 um fenômeno mundial.

A indústria do cinema americano passou a se reajustar on demand e da pior forma possível. Os filmes de super-heróis que nunca tiveram êxito comercial passaram por uma fase nova a partir de títulos como Blade (1998), X-Men (2000) e Homem-Aranha (2002) diante do fenômeno (lucrativo) da adaptação da saga de Harry Potter. A partir disso, a Disney iniciou um processo de fagocitose de seus concorrentes rejeitando todo o libelo liberal do livre-mercado. Pixar, LucasFilms, Fox, Marvel passaram a ser de uma única empresa. Algo parecido, só talvez na China ou Albânia. Uma cultura audiovisual que passou a seriar seus filmes e personagens. Uma sequência nos anos 1980 era uma consequência, hoje é feita aprioristicamente. Os jovens passaram a ter uma autodisciplina extraordinária para esperar por um, dois, três anos por um filme para obter um... final!(são muitos os que não suportam um clássico com final aberto). Esperam sentados por uma longa lista de créditos mais do que conseguem ficar em uma aula na escola para ver uma cena pós-crédito de 45 segundos. Pensemos em quantos morreram sem saber que Tony Stark não iria chegar à pandemia. Isso para não aprofundar que isso afetou o personagem mais longevo do cinema, James Bond, que com Daniel Craig virou uma série.


Essa estratégia de seriar a saga de heróis, considerada maravilhosa por muitos youtubbers (onde vários desempregados ou subempregados começam a monetizar com especulações de mortes de heróis ou easter eggs) encontra problemas com a obviedade: pessoas morrem (Chadwick Boseman), pessoas envelhecem (Robert Downey Jr, Scarlett Johansson), além de não contribuir, como já vimos, para uma diversidade de gostos ou experiências da escola cinematográfica, basta ver as limitações dos irmãos Russo sem o CGI, pois fica claro que os filmes individuais de heróis são artisticamente muito melhores que Os Vingadores.  A força dos personagens da Marvel no cinema hodierno não é por conta de como o mercado a exibe, mas pela força quase mitológica de seus personagens que eram e são lidos e pela grandeza de atores como os citados acima.

Isso tudo exposto, chegamos à conexão dialética entre a infantilização do gosto e dos filmes em uma retroalimentação que pode e deve exaurir esse modelo. Senão, vejamos. O Homem-Aranha de 2002, escrito pelo autor de Jurassic Park e Missão Impossível (outro exemplo de série até a artrite parar Tom Cruise) obedeceu aos cânones da história clássica de Stan Lee e Steve Ditko. E tem pontos interessantes. Tio Bem Parker é um idoso que sustenta a esposa e um sobrinho. Suas primeiras falas são relativas ao tema do emprego na velhice, pois o que tinha como aposentadoria privada não iria sustentar mais a família. A família Parker tem uma vizinha que é vítima de maus tratos por parte do padrasto alcoólatra. Em outra frente, o empresário Norman Osborn é repaginado para o cinema. Ele é um empresário que não é mais dono da empresa que fundou. Ele é pressionado por um representante do complexo militar americano a não respeitar o tempo que a ciência exige pois pode perder o contrato com o Estado para um concorrente (vemos depois que já estava tudo acertado entre o general e o outro empresário). Diante da perda iminente, o cientista e empresário Osborn ataca de Prevent Senior e rompe toda a ética científica possível. Seu filho, por sua vez, não conseguiu se ajustar em nenhuma escola privada americana e se sente acolhido na rede pública de ensino. J.J. Jameson é a profética encarnação de sites ou blogs atuais: notícias falsas, exageradas, para que haja visualização. Peter Parker vira um fotógrafo sem vínculo trabalhista e não é dito que isso é bom para o espírito empreendedor, já que com a morte do tio ele virou arrimo de família. Esse ponto é importante. Tia May é – como nos quadrinhos clássicos – uma senhora de cabelos brancos que dá e recebe um amor ao sobrinho. O Duende Verde – a enésima encarnação de Dr. Jekill e Mr. Hyde – antecipa em anos (coisa que os youtubbers batedores de carteira não viram) o complexo Venom (2018) interpretado por Tom Hardy, ambos vivendo o dilema paulino (“Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim.”). Essa síntese é para mostrar o abismo de abordagens em menos de duas décadas! A oportunista Disney, em conformidade com o mercado identitário criado pela intelectualidade americana criou um universo paralelo. Tia May é encarnada pela ainda estonteante Marisa Tomei (as feministas não falaram do etarismo feminino), a MJ foi encarnada pela mestiça ex-estrela da Disney que acha que interpretar uma adolescente é ter uma eterna cara de arrogância de quem sofre de constipação. Tem um gordinho que tem quer o ponto de humor que fica com a loirinha nerd (bem verossímel). A ciência, estudada e cultivada pelo pré-adolescente Parker agora vem pronta do empresário do bem, nem uniforme rasgado ou para lavar tem mais (falo do primeiro filme da nova trilogia) e, para ter um bom mercado na Índia, Flash Thompson virou um filho da Khan Academy.

A terceira parte da trilogia trouxe ventos novos como sofrimento, perdão e maturidade porque teve que ir na fonte da tradição da própria mitologia para que se fizesse uma frente política, inclusive, com um icônico vilão.  Dito isso, a pergunta que não quer calar é: jovens, vocês terão ano que vem um grande poder. Irão assumir  também a grande responsabilidade?


2 comentários:

  1. Como sempre, perspicás... Obrigado pelo texto, ajudou a entender um pouco melhor a razão de eu detestar essa onda de heróis Disney!

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