Nasce
uma estrela: otimismo de uma vontade
Por
Pablo Spinelli
Dedicado aos meus alunos e à memória das vítimas de
Brumadinho
Bradley Cooper e Lady Gaga em cena do filme
Nos dias atuais não é
costumeiro usar uma resenha crítica de um filme para tergiversar sobre
política. Nem sempre foi assim. Muitas resenhas sobre teatro, literatura e
cinema sempre tiveram grandes intérpretes que faziam analogias entre as obras e
a conjuntura da sua época, a trajetória do diretor, do escritor; a escolha e o
método dos atores; os enfoques e sutilezas de um roteiro; a escolha de cores num figurino ou de um
ângulo da câmera ou ainda, a presença (ou ausência) da trilha sonora. Assim foi com os famosos críticos franceses
que viraram cineastas como Godard e Truffaut; com uma crítica na Itália com
forte presença em periódicos de onde se destacou um Bertolucci; assim também o
foi do Leste europeu socialista a uma New Yorker, revista considerada
vanguardista nos EUA e, no caso brasileiro, há o exemplar caso de Paulo Emílio
Sales Gomes, dentre outros.
A partir dos anos 1980,
seja por mudanças nos cursos de comunicação social, seja por questões mercantis
onde o espaço de uma folha de jornal tinha como meta o anúncio, a propaganda,
as resenhas críticas – e aqui me fixo nas de cinema – caíram de qualidade tanto
de analogia com a conjuntura política e social, quanto na capacidade de intertextualidade,
salvo exceções como a do crítico Rodrigo Fonseca e o decano Ely Azeredo. O que
o leitor se acostumou a ver foi a posição de bonequinhos, a quantidade de
estrelas ou coisa que o valha. Bonequinho em pé, sinônimo de fila cheia. Uma
estrela, condenação ao cadafalso do esquecimento. O valor do filme passou a ser
meritocrático obedecendo a critérios subjetivos como excesso de explosões,
currículo do diretor, pancadaria demasiada, ator carismático ou canastrão,
dentre outros. Isso é muito pouco para qualificar uma obra.
Se assim o fosse,
Sergio Leone jamais teria sucesso nos dias de hoje por escolher um ator com tão
poucos recursos cênicos como Clint Eastwood para fazer a trilogia mais famosa
sobre o faroeste americano, assim como Laurence Olivier poderia ser criticado
pelos seus maneirismos teatrais levados à tela ou um Marlon Brando que parecia
grunhir ou mastigas as palavras. Da mesma forma, a obra de Chaplin seria jogada
ao lixo por conta do seu envolvimento com as atrizes de tenra idade ou Elia Kazan
seria considerado um diretor menor por conta do seu apoio espontâneo ao
macarthismo nos anos 1950.
Dessa forma, colocamos que seja pela visão
rasa determinada pelos espaços de informação, seja pelo subjetivismo político
que torna o olhar da crítica muito reducionista e limitado por questões de
natureza política, as resenhas viraram as costas para uma tradição belamente
construída desde os anos 1920, para não ir além.
Longe de dizer que
somos monopolizadores da forma correta de análise de um filme, não somos os
únicos e nem temos essa pretensão. Há
blogs bons, mas a maioria se concentra no filme em si de forma primorosa, como
o Adorocinema ou Omelete, mas pecam por não abranger mais a sua interpretação.
Não podemos criar uma superinterpretação, ir para além daquilo que a obra nos
proporciona ao olhar, sentir, dialogar. Mas, como nos ensinou Umberto Eco,
podemos ter olhares sobre uma obra que o diretor não imaginou ou se imaginou,
não publicizou. A obra de arte pode ser apropriada pelo espectador para dialogar
com o seu tempo. Não só pode, como deve, pois se assim não o fosse, a arte estaria condenada a ter mais e mais
fatias de bacon e ser consumida como um sanduíche num fast food.
É muito comum ouvir os
espectadores mais jovens falarem: “gostei”, “legal”, “chato”, “nada a ver”, “um
porre, não entendi nada, muita viagem”. Não se pode subestimar o público. Claro
que uns terão mais sensibilidade, outros menos. Há todo um capital simbólico de
cada um, mas independente da formação prévia de quem vê um filme – e no caso do
público jovem atual há poucas nuances de percepção e de expressividade como a
colocada acima, independente das classes sociais ou gênero – o que se pode
deduzir é que desde os anos 1980 e, principalmente, nos anos 1990 (quando o
cinema brasileiro foi quebrado pelo governo do primeiro presidente eleito após
a ditadura militar) e 2000 houve a falta de uma pedagogia molecular das massas
para ver um filme a partir dos mais variados itens já expostos: trajetória do
diretor; o que estava acontecendo no momento de sua produção e do ano de seu
lançamento; as escolhas dos atores por aquele papel ou filme (nem sempre é o
cachê); fotografia, música etc. etc. Isso não quer dizer que essa pedagogia
tenha como compromisso fixar o olhar
para um determinado viés político ou ideológico, mas ao contrário, quanto mais
olhares e interpretações mais a obra fica rica e ganha relevo e perenidade.
Essa educação do olhar não é algo de um campo da esquerda. Começou nos vitrais
da Igreja Católica do mundo medieval em uma sociedade iletrada, logo, acima de
qualquer suspeita de marxismo extemporâneo, algo que se faz mundo nos dias
atuais.
Essa longa digressão
tem como objetivo mostrar o que permeará
nosso trabalho acerca não só dos filmes indicados ao Oscar, parceria iniciada
no ano passado, mas também sobre séries e outros filmes que virão. Escolhemos
para começar nossa conversa com vocês, prezados leitores, o filme “Nasce uma
estrela” (2018), dirigido por Bradley Cooper.
O filme ganhou
notoriedade pela ousadia e certo oportunismo do diretor de pegar uma história
que já ganhou três versões no cinema (1937, 1954, 1976) e colocou uma cantora
de grande sucesso para atuar. E conseguiu uma dupla proeza. Não só Lady Gaga
atuou bem – o que não quer dizer que sempre o fará – como o próprio ator
conseguiu sua melhor atuação (bem superior aos filmes que fez como Sniper
Americano, Trapaça, O lado bom da vida).
Cooper deu ao seu cantor pop star decadente por conta de sua dependência de
álcool e drogas uma voz que propositadamente imita ao do ator que faz seu
irmão, o veterano e sempre bom Sam Eliott, uma rouquidão de uma vida cansada do
estrelato, das turnês, da solidão e de um passado onde criou um mito que desmorona ao longo do filme. Cooper já
demonstrara em Guardiões da Galáxia o seu talento vocal. O seu bronzeamento
artificial para algo californiano vindo de um cantor que veio do meio-oeste
americano é uma demonstração do rótulo que a indústria produz.
Esses fardos fazem da
sua vida um ritmo sem sentido, que acaba por ter sua epifania quando encontra
uma garçonete em um bar de drags queens
cantando Edith Piaf e, com otimismo da
vontade, afirma que “a vida é rosa”. Aqui, o diretor homenageia uma
das mais importantes cantoras do século
passado não só pela música como pelo ambiente com que Piaff começou sua
carreira: cabarés, baixo meretrício, rodeada de meretrizes e cafetões. Lady
Gaga é a Piaff do século XXI com melhor fortuna (em todos os sentidos). Sobre a
Lady Gaga, há outra referência interessante no roteiro quanto às determinações
estéticas da indústria, quando se refere ao nariz como obstáculo para uma
carreira no show bussiness. Propositadamente ou não, a atriz que encarnara a
então última versão de Nasce uma estrela, Barbra Streisand, sofreu muito por
conta do seu nariz – referência para a criação da porquinha dos Muppets.
Curiosamente, o filme rivaliza com outra película, que o vocalista de uma banda
inglesa tinha dentes completamente fora dos
padrões de mercado do
entretenimento.
A história de amor dos
protagonistas vai lenta como uma balada, mas segue adiante. Cooper não quis
privilegiar o sentimento de posse que permeou as versões anteriores ao optar
por um distanciamento agravado pelo escracho público, algo que podem destruir
carreiras antes de um julgamento e de uma sentença, como o caso do duplamente
oscarizado Kevin Spacey que se viu envolvido em um “Spotlight” para atores, que
pode ser o primeiro passo para uma onda neoconservadora de costumes que os
democratas não percebem que são os criadores dessa “marolinha”.
A partir dos dilemas da
política dos EUA onde um ator do porte de Robert DeNiro foi ameaçado de morte
de forma efetiva, qual a solução democrata para a reeleição de Trump? Paralisar
o serviço federal ou dar estatuetas para mexicanos (como A Forma da Água ano
passado ou Roma, esse ano) é muito pouco para uma nova política. Mas o filme de
Bradley Cooper é provocativo para o caso dos EUA e para o nosso. Após Obama não
se pensou na sucessão, em novas lideranças, na pedagogia cívica, na superação da
crise econômica pela política, mas tão somente pela economia. Assim, a estrela
que sobrou pode ter sido “a Estrela da Morte”, como adoram os Siths. Porém, num viés do otimismo da vontade
como já apontado por um cientista
político brasileiro, as novas estrelas estão por aí, podem estar num bar
de drags, nas escolas públicas ou privadas, num combalido sindicato, numa ONG,
num rapper, numa roda de samba. Nasce uma estrela permite a leitura de uma
velha política que se vai – e vira uma estrela presa em uma constelação, não
mais do que isso – e a nova política que vem
pelo mundo do interesse, do desejo, onde com treinamento, paciência
virtuosa, disciplina, encantamento, pode nos dar a chance de novos pontos
brilhantes aqui e alhures. Basta querer achar e fazer estudar o mundo das
coisas reais. O filme é o misto do otimismo de uma vontade transformadora com o
pessimismo da razão dos fatos da vida, mas essa, tal qual um rio, segue seu
curso e cabe a velhos e novos marinheiros quererem dirigir as embarcações, mesmo
que se esteja à beira de um precipício, como alude a bela (e possivelmente
oscarizada) canção do filme.
Parabéns querido amigo. Percebo que seus talentos vão além dos muros da escola. Um forte abraço e sucesso!!!!
ResponderExcluirAqui o resenhista pavimenta uma abordagem que eu entendo ser muito interessante: os highlights do jogo e uma análise arguta do que cerca a cancha e os jogadores. Vale a pena o reconhecimento de que ele está preocupado com "como o espectador pode ver". Muito bom Mestre!
ResponderExcluirAgradeço os comentários acima. Quanto mais leitura e debates, melhor.
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