Nas margens desse mundo líquido há muitas contribuições na literatura brasileira contemporânea para contribuir na interpretação do momento em que vivemos. O livro de estreia de Márwio Câmara é um desafio para aqueles que desejam enfrentar as saídas autoritárias para nosso país. Solidão e outras
companhias merece ser debatido nos diversos circulos de leitura que emergiram recentemente. Fica aqui essa dica e abaixo segue a entrevista que VOTO POSITIVO fez com o autor.
Foto: Cris Torres
Qual
foi sua trajetória pela literatura até o seu livro Solidão e Outras Companhias?
Comecei trabalhando como
jornalista. Sempre fui apaixonado por literatura. O exercício de compor
histórias iniciou-se nos primeiros anos da infância. Sempre tive a certeza de
que seria escritor. O que me levou à faculdade de Comunicação foi exatamente a
ambição de um dia publicar um livro. Não imaginava que no meio disso tudo
passaria a escrever sobre livros. Foi um exercício muito natural e prazeroso.
Amo fazer entrevistas, sempre estou tentando construir conhecimento com o meu
entrevistado. Entrevisto, sobretudo, escritores. Gosto também de resenhar, mas,
sobretudo, escrever matérias especiais e ensaios. Todos voltados à literatura.
No meio de tudo isso, acabei trabalhando num festival literário e também
conhecendo o meio. Trabalhei durante alguns anos como assessor de imprensa, mas
vi que esse trabalho mais me afastava da literatura do que me aproximava. Por
isso, resolvi fazer uma pós em Estudos Linguísticos e Literários, e também uma
licenciatura em Letras. Seria uma forma de eu trabalhar com literatura, e
ganhar algum dinheiro com isso, já que a crítica literária te dá mais status do
que qualquer outra coisa. Descobri que a docência é a minha grande paixão ao
lado da literatura. E, diferente do jornalismo, me sinto um cidadão somando ou
querendo somar na vida de alguém. O espaço da sala de aula para mim é sagrado.
É como uma segunda casa. Amo construir conhecimento com os meus alunos. Sou
muito empático com as pessoas, no sentido de me colocar no lugar delas, o que é
um exercício fundamental para quem escreve. Isso me ajuda dentro de sala de
aula. No final das contas, os alunos precisam de alguém que ame realmente o
ofício da docência, e eu verdadeiramente amo.
Quais
seriam suas referências literárias? De que forma elas aparecem em seu livro de
estreia?
Minhas referências literárias
são muitas. Acho que, de maneira geral, os autores que até hoje
fazem a minha cabeça são aqueles que exploram a psique humana e trabalham a
linguagem de uma forma diferente e bastante libertária, fugindo das regras ou
dos modelos pré-estabelecidos da prosa convencional. Eu poderia citar aqui o James
Joyce, a Virginia Woolf, a Clarice Lispector, o Fiódor Dostoiévski, o Samuel
Beckett e o Laurence Sterne, que é um autor incrível, extremamente sofisticado
e moderno, de lá do século 18, que influenciou, inclusive, o Machado de Assis e
o já citado Joyce. Faço muitas
citações de obras literárias, musicais e cinematográficas neste livro. Gosto de
trabalhar com essa coisa do hipertexto. Ou seja, um texto que te leva para
outros tipos de textos e referências. Meu livro de contos trata-se, na verdade,
de uma narrativa puzzle. A ideia das
possibilidades de leitura e de brincar com a fusão dos gêneros literários e
artísticos, em virtude da fragmentação, permite que ele possa ser lido como um livro
de contos ou romance.
Solidão
e Outras Companhias foi lançado no ápice de uma crise de público no mercado
editorial no Brasil. A recepção do livro atendeu as expectativas?
Fui lançado numa editora
pequena, com distribuição limitada nas livrarias. A editora imprimiu 180
exemplares iniciais, mas totalizou mais de 210 em dois meses de lançamento. Se
tratando de um livro de estreia e com uma distribuição limitada, esse número é ótimo
número. As vendas me deram a consciência de que o público me conhece e existe
um interesse pela minha produção literária. Desde 2013 passei a escrever
resenhas, entrevistas e ensaios de literatura na internet, migrando para os
cadernos de cultura mais tradicionais da imprensa brasileira. Mas eu não tinha
ideia de que existia um expressivo número de leitores de vários cantos do
Brasil me acompanhando. Isso é muito gratificante.
Sempre
há uma expectativa no lançamento de um livro de estreia. Você poderia fazer um
perfil do leitor do seu livro?
Não tenho muita ideia do perfil
dos meus leitores, mas creio que parte dele seja de escritores, jornalistas e
professores. É um círculo vicioso se tratando da literatura brasileira
contemporânea. Os autores acabam se dialogando com os seus pares. Meu trabalho
não é muito voltado a uma literatura que se pretende entreter exclusivamente o
leitor. A literatura pode entreter, não há nenhum problema com isso. Mas
trabalho bastante com a experimentação da forma, com diferentes recursos em
minha narrativa. É como uma espécie de laboratório. Não creio que eu esteja
inventando nada novo, mas estou inserido num ambiente de vanguarda. Tenho
interesse em contar uma boa estória, sendo que nesse exercício existe uma
ambição em trabalhar com processos mentais, sinestésicos e locais em que a
linguagem alce um novo patamar, que não seja apenas o senso comum. Gosto da
ruptura, de estar fora da caixinha. Não desejo escrever para um grupo restrito
de pessoas, mas desejo leitores que encarem a literatura como uma
experiência para além do mero entretenimento, que, no fundo, não diz
nada.
Há
alguma experiência de trabalho em escolas públicas com seu livro? Qual seria o
elemento mais atrativo do livro para a juventude?
Alguns amigos do meio literário
já me disseram que alguns contos do livro poderiam ser utilizados em sala de
aula. Apesar dos temas serem bastante pungentes, acredito que eles podem ser
trabalhados sim com o público do Ensino Médio. Sou professor de Língua
Portuguesa, Literatura e Redação, e os meus alunos sempre perguntam pelo meu
livro, mas pouco falo sobre ele em sala de aula. (risos) Quem sabe aconteça de
alguém adotar para uma turma de Ensino Médio. Seria muito legal. Embora haja
uma imagem de que a juventude não gosta de ler, creio que falte mais incentivo
das famílias e das escolas, além de mediadores de leitura, para que as crianças
e os adolescentes descubram esse universo e se identifiquem por ele. Não
creio que o brasileiro seja desinteressado pela literatura. Precisamos de mais
incentivo e pessoas engajadas nesse propósito. A literatura é um
grande barato, mas a seleção e ao mesmo tempo a autodescoberta são fundamentais
para se construir um leitor.
Foto: Cris Torres
A
narrativa de seu livro se aproxima da periferia?
Olha, essa
pergunta é bem interessante, porque estive pensando muito sobre a questão,
desde que eu participei de uma mesa sobre autores da periferia, no Salão
Carioca do Livro (LER). Sou nascido e criado na periferia, e já vi muita coisa
que pessoas que moram na Zona Sul ou nos grandes centros urbanos não fazem
ideia. Sei o quanto a classe média e o proletariado sofrem, etc. A periferia é
brutalmente esquecida pela maioria dos nossos governantes. As coisas chegam
por aqui de forma muito lenta e atrasada, muitas vezes. Meu livro, embora não
mimetize esse universo propriamente dito, fala sim da periferia, a partir do
momento em que insiro como personagem principal uma travesti. Ela é o centro e
o corpo de todo o livro. Ao mesmo tempo, falo de outras questões, que envolvem
a falta de oportunidade no mercado de trabalho – a tal falácia da meritocracia –
e também da própria segregação das pessoas, da falta de um olhar mais
aprofundado e sensível sobre as coisas ao nosso redor, e que tem a ver também
com os sujeitos ditos como marginais. Aliás, creio que todas as personagens de
meu livro que estão à margem da esfera dita normativa da sociedade. No fundo,
são seres solitários que buscam através da imaginação e da autorreflexão uma
resposta às suas duvidas ou simplesmente uma válvula de escape. Então, pensando
nesta questão sobre a periferia, meu livro reflete e muito sobre, não de forma
bairrista ou de cunho restritivamente social, porém no sentido humano de ser
periférico, deslocado, à margem.
Vai
participar da FLIP ( Festa Literária Internacional de Paraty) em julho?
Olha, todo ano eu tento
me programar e nunca consigo ir. Parece que este ano existe uma possibilidade.
É a festa da Hilda Hilst, uma escritora que gosto muito e que, infelizmente,
teve seu reconhecimento de forma muito tardia, como ocorre a grande maioria dos
escritores. Parece que na literatura poeta bom é poeta morto. Mas, sim, existe
a possibilidade de eu estar na FLIP, embora nada oficial por enquanto.
Tem
algum novo livro em andamento?
Tenho um livro pronto
que entreguei há poucas semanas para o meu editor. É um poema em prosa, que
saberemos mais detalhes no ano que vem. Mas o que eu posso adiantar, por ora, é
que trata-se de um livro que fala essencialmente sobre o amor, ou a idealização
dele.
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