O
MUNDO LÍQUIDO DE GUILLERMO DEL TORO
Em homenagem ao
centenário de Nelson Mandela
Por Pablo Spinelli
Autores emblemáticos das Ciências Sociais, Norbert
Elias e Zygmunt Baumann, ganharam apelo popular e uma demanda mais juvenil a
partir de inserções de parte de seus trabalhos nas últimas provas do ENEM.
Ambos tiveram seus trabalhos reconhecidos na Academia quando já estavam numa
idade bem madura. Algo semelhante ocorreu no campo da literatura com o
português José Saramago, autor que convocaremos mais abaixo. O polonês Baumann
e o alemão Elias trouxeram, cada um de forma específica, uma herança de outro
“maldito” na Academia, Georg Simmel, hoje, bem mais popularizado que Sartre ou
Durkheim no mundo universitário. Em todos os citados – à exceção de Saramago –
há o problema da “questão judaica” como um obstáculo para seus nomes terem
figurado em Universidades europeias. O que isso tem com a resenha de um filme?
- o ansioso leitor ou a inquieta leitora pode se perguntar. O tema da modernidade
que causa distância, o avanço do mundo urbano que cria isolamento, a polidez
dos costumes e das pulsões dos indivíduos que em troca, recebem isolamento, o
avanço dos direitos com a permanência dos outsiders.
Todos esses pontos foram abordados – cada um com sua ênfase - por Simmel, Elias e Baumann.
Pois bem, esses são os temas
da belíssima fábula “A forma da água”. O mundo líquido aparece das mais
distintas formas da vida rotineira e sem sentido da personagem vivida por Sally
Hawkins. O líquido e o tempo. Tempo para acordar, para cozinhar ovos, para o
prazer solitário no banho. Vítima da orfandade, cabe a essa subalterna que não
pode falar, ser a guia da cooperação,
tema caro a um outro cientista social,
Richard Sennett. Uma muda que fala mais do que todos, pois fala pela emoção e pela
razão. A sua política é na defesa da humanização daqueles que são desumanizados
nos anos 1960 em plena Guerra Fria – ambiente de The Post – os outsiders dos EUA que nos são tão
próximos: uma mulher subalterna muda que é vítima de assédio; uma negra que
convive com um machismo da classe subalterna; um idoso homossexual recolhido à
nostalgia dos musicais; um espião soviético em território hostil. A unidade
desse grupo ganha força e músculos quando decidem olhar o outro e perceber o
quão ele pode ser humano se houver aquilo que é caro para outro “querido” do
ENEM – o filósofo alemão Jurgen Habermas – a relação dialógica em tempos de
intolerância. Esse grupo seria “Os Vingadores” do mundo das coisas reais.
A fábula de Guillermo Del
Toro tem endereço certo: a intolerância e a violência personificada pelo
competente Michael Shannon, cujo personagem militarista que estimula a
indústria automobilística dos EUA com um carro azul-petróleo de forma sutil evidencia os patrocinadores do atual
mandatário estadunidense. Além da aparecerem o racismo contra os negros e a
homofobia.
O fato de o monstro aquático
ter sido capturado na Amazônia em uma suposta ação frustrada de uma exploração
dos EUA no petróleo da região nos evoca de Monteiro Lobato e a criação da
Petrobras ao “bolivarismo”. A personagem feminina principal quer amizade,
companhia e amor. Com isso, desbrava obstáculos e se aproveita da
invisibilidade que as profissões subalternas têm para fazer a sua política de
salvação do Outro- sob os auspícios de Carmem Miranda, uma das várias citações
da música latino-americana no filme que lembram o que esse subcontinente
contribuiu para a cultura mundial.
O cineasta dá indícios desde
o início de como terminará sua fábula. O nome do cinema que cita o mito de
Orfeu é claro. Além do mito de Orfeu, Del Toro, como bom representante da
América Latina, nos coloca como filme do cinema vazio “A história de Rute”, a
mesma que liberta Malon da sua pedreira, segundo a Sagrada Escritura.
Destacamos outra questão da
película: como se inserir numa sociedade onde a tecnologia pode diminuir com o
poder da arte individual e prefere a reprodutibilidade técnica como produto?
Essa é a temática do embate entre fotografia e a ilustração. De forma sutil, é
o embate do cinema vazio com os serviços de demanda cinematográfica doméstica. O
cinema vazio é a demonstração da falta de sociabilidade tal qual o personagem que
só consegue viver do passado mítico através da nova tecnologia: a televisão.
A presença feminina é
importante. Enquanto em “O Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, uma
mulher conduzia a todos à liberdade, em “A Forma da Água” cabe a outra mulher,
vítima de uma violência infantil que a deixou muda buscar o diálogo. Ressaltamos
o papel do personagem coadjuvante espião comunista. Através dele temos uma
noção do horror que foi a Guerra Fria, uma advertência para os saudosistas de
“dias de um futuro esquecido”. A URSS da época da Crise dos Mísseis (enquanto
The Post desconstruiu a imagem positiva de Kennedy, aqui o mesmo acontece a Kruschev)
não era o “Paraíso Perdido”.
Por fim, a tragédia de uma
Eurídice dos tempos modernos acaba por dar uma
volta no parafuso das teorias de Baumann. Será a liquidez, o fim dos
tempos ou há espaço para a democracia, diálogo, leveza e amor quando houver a
imersão da cooperação e da solidariedade em nossas mentes e corações?
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