domingo, 12 de fevereiro de 2017

ATUALIDADE

O 18 Brumário Internacional e Nós
Por Pablo Spinelli
 
O ano de 2016, em um tom modestíssimo, foi no mínimo singular do ponto de vista internacional e nacional. Um ano que é caudatário de pendências de 2015 e que esse ainda deixará seu rastro por um tempo incerto, sua triste herança e alguns aprendizados para o que se iniciou; o ano onde o mundo falará – nostálgica ou raivosamente sobre o centenário da Revolução Bolchevique e também, talvez mais importante por conta da sua forte resistência de sobrevida na condição de clássico, a comemoração (ou não) dos 150 anos de “O Capital”, de Marx, um dos livros mais comentados, criticados, debatidos e em proporção inversa, lido da humanidade.
Na conjuntura internacional percebe-se uma lenta retomada de otimismo quanto à economia a partir dos indicadores dos EUA, com mais timidez na Europa desenvolvida e da retomada do crescimento chinês simultaneamente; no “sul do mundo”; os conflitos bélicos que permitem enormes lucros à indústria armamentista não param. A Primavera Árabe, como a de 1848, murchou. Iraque e Egito destruídos em facções, assim como a Líbia. Os caudatários da ordem autoritária desses países onde ainda persistem os pertencimentos tribais se foram e o Ocidente nada colocou no seu lugar a partir da política local com base na democracia. A Síria, numa relação com uma Rússia cujo mandatário está mais para inclinações da Grã-Rússia czarista do que para uma herança do socialismo real que muitos enxergam equivocadamente analogias – que já se extinguiu há tempos –, é um cenário de horror onde uma cidade histórica é dividida, patrimônios da humanidade são destruídos pela guerra e/ou pelo dogmatismo de grupos políticos-religiosos, como o Estado Islâmico, o que demonstra a necessidade de uma revisão do estatuto da ONU, instituição que foi esvaziada após o fim da URSS. Diante do quadro caótico permeado pela miséria, pelas guerras civis, pela ação do terrorismo onde o Estado se mostrou frágil como monopolizador do uso da violência, como defendem os liberais, assistiu-se uma das maiores migrações em massa desde a II Guerra Mundial (1940-1945). 
A Europa, como um todo, tentou se desvincular da sua "herança maldita", ou seja, tentou apagar seu passado imperialista, o mesmo o qual Edward Said havia alertado que iria cobrar seu preço. Há, por outro lado, algo a se saudar que é o posicionamento do Governo da Alemanha tendo em vista a trajetória política daquele país na primeira metade do século passado. Neste caso, as migrações serviram de mote para o endurecimento de concepções e opiniões de demagogos em épocas de crise, forma pela qual não se responde aos problemas da globalização, pelo contrário, não só não enfrenta os problemas postos por ela como a renega a partir do recrudescimento do Estado-Nação que permitiu da Grécia à Itália – berços da Antiguidade Clássica – um aumento da xenofobia e das direitas radicais, como vemos e veremos na França com uma Marine que não é a Marianne da bandeira tricolor, mas a da bandeira de cor negra de triste memória; como se percebe no surpreendente nacionalismo que o conservadorismo tradicional inglês não soube adestrar após anos de fomento, como foi o episódio do “BREXIT” quando a criatura (o nacionalismo) tomou para si o domínio da ação do Dr. Frankenstein (o liberalismo), em um dos países historicamente de maior liberdade quanto ao pluralismo de ideias, especialmente no século XIX. 
Na América Latina, o “bolivarismo”, um projeto que nunca disse a que veio, uma mistura de demagogia esquerdista com nuances keynesianas tropicais, teve seu fim para regozijo liberal. A onda neoliberal dos anos 1990 é hoje uma "marolinha" que ganha seu impulso a partir da insatisfação das camadas populares e médias diante da ineficácia do Estado assistencialista que se formou nos países que adotaram tal modelo. Mais um tento para o conservadorismo que associou – parte por culpa da retórica chavista – o Estado assistencialista com o comunismo e com isso tirou do baú os fantasmas que deixaram de ser há muito de ser um espectro - o discurso mofado do anticomunismo presente nas redes sociais à discursos de políticos na América Latina. O espectro que ronda aqui e alhures é o do fascismo, modelo que conseguiu de forma surpreendente e brilhante se reinventar no seu deslocamento do Estado para o mercado e ganhou escopo nos tecidos sociais. Nessa toada, um representante do mercado que se identificou alheio ao mundo político – e a História mostra que todos que assim o dizem são mais políticos que os que se reconhecem como tal – acabou por conquistar as mentes e corações nos EUA a despeito do establishment, inclusive do seu próprio partido. “House of Cards” foi inspirador para Trump que, por não ser leitor de Maquiavel, ao demonstrar por ora optar pela coerção sem consenso, sem a disputa da hegemonia, mas uma imposição da sua retórica aliada aos interesses corporativo caudatários da Guerra Fria tem como fiador o americano médio dos cinturões industriais que estão sofrendo o desemprego ou os grupos sectários racistas/segregacionistas, homofóbicos e outras vertentes do conservadorismo nos costumes como movimentos religiosos que apoiaram sua campanha.
Trata-se da herança da tradição do WASP ("Branco, Anglo-Saxão e Protestante" no acrônimo em ingês) do século XIX, um corpo estranho no mundo da globalização e do multiculturalismo. Por isso, seria estranho a sua simpatia entre os "mulatos e caboclos" no Brasil, mas percebemos uma cultura política alheia aos valores da democracia em diálogo com esses segmentos norte-americanos.
No Brasil, a crise econômica de 2015 deixou seu legado para 2016. Com a crise posta, a "timoneira" mudou o curso do navio sem antes expor aos navegantes a mudança da cabotagem logo após a sua segunda vitória eleitoral, como se viu na escolha do novo responsável pela Fazenda e pela fritura ao que ocupava o cargo. O mercado, ao perceber uma fragilidade na direção política aliado a uma mídia combativa como em 1954, 1964 e – após os movimentos sociais nas ruas – 1992 e aos  panelaços como os dos anos 1980 na Argentina feitos por uma classe média tradicional e também por aquela que foi batizada de “a nova classe média” (que virou nova justamente nos governos de liderança petista), acabou por optar pela especulação e rebaixou o Brasil pelas famosas agências de risco – o risco real é para quem acredita na lisura das análises dessas agências, como visto no filme “A Grande Aposta” – a despeito do enorme lucro ao mercado financeiro que o governo (desde FHC) permitiu ao colocar sua ênfase no pagamento da dívida pública. Por sua vez, a sociedade se “americaniza” cada vez mais. A pauta dos direitos ter se sobreposto aos conceitos de classe é algo que se originou nos fins dos anos 1970 e se consolidou nesse século – basta passar pelos campi universitários para ler os panfletos e ouvir as discussões dos alunos e dos professores, campo privilegiado da construção do conhecimento.
Nesse caminhar o Brasil chegou ao terreno perigoso da judicialização da política. Há, é verdade, um ponto positivo que é a descoberta de um poder que era alheio ao cidadão comum, o reforço do Ministério Público, momento em que a Carta de 1988 mostra sua face republicana, mas por outro, o efeito midiático contou como um dos alicerces das ações desse poder, como no STF, assim como a reforma ético-moral proposta pelos “tenentes de toga”, como citou um famoso cientista político brasileiro, que propuseram ações corretivas à corrupção em um grau tal que a sociedade fica descrente da política e quer um novo país – mas sem a classe política como esse país será parido?
No hibridismo de impeachment com golpe; de cassação sem a perda de direitos políticos, numa espécie de releitura do genial panfleto do século XIX, “Ação, Reação e Transação”; o Brasil ficou paralisado, a violência e o desemprego aumentaram e o vice-presidente que, desastrosamente resgata um modelo de governo à República Velha como se compreende a partir do seu slogan positivista – o que o aproxima dos “tenentes de toga” – e no Estado reformista que o aproxima de Campos Salles e Joaquim Murtinho e ressurge com nova modelagem uma "Política dos Governadores" a partir do laboratório que é o Rio de Janeiro, o estado das contrapartidas, onde após a privatização do trato público da água e do esgoto, tudo será normalizado, os salários do funcionalismo público serão colocados em dia, as esposas dos policiais militares voltarão sorridentes para suas casas, haverá menor índice de morte de PMs (ainda há de se perceber que a maioria que morreu esse ano curiosamente estava próximo ou dentro de um estabelecimento comercial - joalheria, restaurante, shopping - o que permite a leitura de que morreram por conta do "bico" e não por serem policiais). 
Por falar em Vargas, mais uma vez há uma nova volta do parafuso quanto à história do “fim da Era Vargas”. E mais um paradoxo surge. O enterro tem consigo os elementos do enxugamento da máquina pública; uma reforma previdenciária maximalista que tende a empurrar a classe média para a iniciativa privada; a racionalização burocrática.
Contudo, ao lado disso, a reforma ética-moral está com uma perigosa vida própria, um udenismo à esquerda e à direita que já derrubou seis ministros e um está sub-judice e faz o governo balançar na pinguela. Um liberalismo que se diz antivarguista, mas propõe uma reforma educacional por medida provisória, a herança do decreto-lei. O apoio de uma base congressista cuja maioria é fisiológica, cimentada em interesses econômico-corporativistas ou não republicanos apegados, como se viu na votação do impeachment, à família, à nação e à religião.
A Voz do Brasil não apenas se manteve no seu horário, saindo da pauta do Congresso a possibilidade de opção de transmissão – independente do trânsito, do futebol ou do bom-senso – como se tornou ostensivamente um mecanismo de propaganda do Executivo federal como nos tempos do presidente gaúcho que namorou de forma aberta com o positivismo e com o tenentismo. Dito de outra forma, a herança de Vargas que todos apedrejam é difícil de enterrar. 
Há por parte da sociedade o desejo da mudança, mas um repúdio aos atores tradicionais, o que numa crise de hegemonia abre uma possibilidade ao aventureirismo ou a um "bonapartismo", no clássico estudo de Marx (O 18 Brumário de Luís Bonaparte) e desenvolvido por Gramsci, com o "cesarismo". E como a História nos deixou de legado tal quadro, se confirmado,  é a derruição da democracia.
 

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