segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

IDA - Crítica ao Filme




 
A Questão "Ida"
 
Por Pablo Spinelli
 

Há caminhos de ida sem volta. Há caminhos de ida ziguezagueantes. Há voltas onde o ponto de partida não é o mesmo que o ponto de chegada. Nesse aspecto apresenta-se o candidato ao Oscar de Melhor Filme estrangeiro, “Ida”.
Um filme que aparentemente não é para todos os gostos. Filme polonês. Em preto e branco. Passado nos anos 1960. Com momentos de silêncio e contemplação. Mas, como a paciência é uma virtude, o filme supera o que seriam esses obstáculos para a grande massa e nos oferece reflexões.
Uma jovem noviça antes de ser freira é aconselhada a ver a sua única parente viva, uma tia de vida aparentemente errática – bebe e fuma demais – para confirmar sua vocação religiosa. Caso a jovem achasse que o mundo católico é o seu mundo, voltaria para o convento e se firmaria como freira.
O que pode ser um fiapo de roteiro passa a se tornar instigante. A jovem, que com uma carga de julgamento ético-moral não vê com bons olhos o comportamento da tia – que dorme com homens que encontra em suas bebedeiras -, aos poucos estabelece interações com a tia e o que era rudeza caminha para a sociabilidade, usando aqui os conceitos de Georg Simmel. Do conflito pode haver coesão e não necessariamente esgarçamento (como vemos PT x Marta, entre outros). A jovem precisa de conhecer o seu passado. O espectador se depara com ousadias no roteiro. A noviça é um peixe fora d’água posto que sua origem é judaica. Partindo desse ponto, vem o grande questionamento. O que aconteceu com seus pais? A partir daí, vemos tia e sobrinha indo no coração das trevas da história da Polônia dos anos da Segunda Guerra. A tia errática assume outro papel social: é uma dura e implacável promotora pública do Estado Socialista polonês.
O que aconteceu com os pais judeus da jovem noviça? Sabe-se que estão mortos. Mas quem os matou? Aonde estão seus corpos? Temas tensos numa Polônia que viveu a situação da Floresta de Katyn nos estertores da Segunda guerra (sugerimos aos leitores dessa resenha que procurem o que foi essa polêmica histórica). Até aqui, nesse resumo, não adiantamos nada a mais do que 25 minutos do filme nos apresenta. O que era uma relação de distanciamento passa a ser de aproximação gradativa, com ressalvas e identidades. Mas aos poucos, numa provocação clara, a noviça torna-se rebelde. Sobre quem matou e o porquê deixamos aqui uma pista: não são os usual suspects. E isso faz do filme um ar de oxigênio e reflexão. A Polônia cinzenta do filme é não só uma referência aos filmes poloneses – Roman Polansky fez o seu primeiro assim e tratou do tema judaico em “O Pianista” – como também a um país de matizes, não era o branco, o preto e nem o vermelho, o branco e o azul como defendiam alguns cineastas liberais poloneses dos anos 1980. Nessa zona acinzentada há um questionamento de estereótipos que enriquecem o filme e a história. Como uma Polônia sob o jugo “totalitário” (aqui uma enorme concessão de um conceito a uma famosa filósofa de origem judaica) soviético tinha uma promotora alcóolatra e adepta de amores fugazes? Uma Polônia sob o autoritarismo do ateísmo soviético mas onde do início ao fim temos Igrejas católicas, santos, crucifixos e a liberdade de ir e vir de uma noviça nas cidades. Um pouco diferente das imagens simplificadoras das caricaturas horrorosas da Guerra Fria. Para dar mais um tempero, temos uma noviça que faz flerte (mais Simmel) com um jovem...guitarrista que toca...jazz! Bem, seria algo alegre para o nosso querido e saudoso Hobsbawm ver. Na Polônia dos anos 1960 temos jazz. Tocado em hotéis como se fossem night clubs. A pergunta que não quer calar: Essa Polônia era a descrita pelo líder sindicalista Lech Walesa?
Tolerância religiosa, culto ao prazer, aos desejos, aos corações desvelados, dúvidas religiosas, o cinza que permite pensar que uma nova geração de intelectuais poloneses pode rever para além dos discursos – nada impede a crítica ao burocratismo – aparece até um “sabe com quem está falando?” que faria um famoso antropólogo brasileiro rever seus conceitos sobre a cultura brasileira.
E a jovem noviça? Ela não tem uma máquina estatal sobre sua cabeça. Ela tem o acerto de contas do seu passado, um reajustamento do seu presente e uma ida a um futuro depois de gozar alegrias e dissabores da vida. Finalmente minha geração – e olha que havia um certo pessimismo dessa possibilidade -, ainda caudatária do discurso da Guerra Fria, pode ver nuances e redescobertas que começaram com um “Adeus, Lenin”. E assiste ainda uma certa nostalgia do mundo soviético em outros filmes, como “Busca Implacável 3”., onde o Estado levianítico (aqui uma referência a outro filme indicado ao Oscar de Filme Estrangeiro, o russo “Leviatã”) gerou quase uma anomia após sua desintegração. Mas, terrivelmente o inimigo agora é outro, lembrando o maior sucesso de público do cinema do Brasil. Só que esse inimigo – os jihadistas – é um vespeiro que deixaremos para os snipers americanos. Mas isso é para outro texto.







Um comentário:

  1. Vagner,

    Sobre “Ida”. Vi o filme no dia que assisti ao muito falado “Relatos selvagens. Mas gostei muito mais do minimalismo e estado contemplativo de “Ida”, também de uma estética que, parece, me devolveu ao cinema do Leste Europeu de fins dos anos 50-início dos 60 – fantasmas do degelo –, quando A. Wajda nos apresentou os secos, diretos e objetivos “Cinzas e diamantes” e “Kanal”. “Ida” me levou de volta a um cinema que jugava perdido. Por isso, senti muito prazer ao vê-lo. O texto do seu amigo Spinelli também é feliz por abordar aspectos que ultrapassam o senso comum, inclusive de críticos. Ele fala muito do catolicismo de “Ida” e dos culpados que não são os suspeitos de sempre. De certa forma, a resenha aborda um vazio, uma obscuridade, uma zona não frequentada por um cinema que se faz na dicotomia do preto e do branco. A estética de “Ida” também caminha para este ponto. O preto e branco do filme é bem cinzento, inclusive de um cinza que lembra a quaresma dos católicos cheios de culpa e que tem à disposição um período de purgação para dar conta dos pecados (depois, pecar de novo) e promover outros necessários ajustes com o lugar, os outros e a consciência (por aí voam as minhas lembranças de menino apavorado com a Semana Santa vivida na Zona da Mata de Minas). São as idas e vindas do filme, um ciclo interminável que não se fecha. Fechará, algum dia? Aquela floresta, tão enigmática, na qual os corpos dos pais e irmão da moça estão enterrados, nos leva a perguntar por isso. Katyn: há um filme recente do Wajda, com este mesmo nome. É Doloroso. Você o viu?

    Abraços

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